domingo, 24 de dezembro de 2017

Caçada Selvagem.



         Respirou fundo o ar gelado do fim da tarde e sentiu-se contagiado pela energia ao seu redor. A imensa rena que montava tinha o corpo forte e quente, que parecia vibrar de excitação diante da marcha que logo iniciariam. Suas bufadas de ar produziam fumaça, devido ao frio intenso e os enormes chifres espalhavam torrões de terra, cavando o chão congelado.

         Seu exército de elfos ria e entoava cânticos sobre caçadas passadas, ajeitando os últimos detalhes de suas selas, checando espadas, arcos e flechas.

         Abriu um largo sorriso provocante, olhando o velho guerreiro calho que se posicionava ao seu lado, seguido por seu exército de heróis mortos. Seu cavalo também se demonstrava contagiado pela atmosfera, batendo ansioso suas quatro patas dianteiras no chão.

         O velho retribuiu seu sorriso com um falso olhar de censura, buscando manter a pose de Pai de Todos, mas incapaz de esconder o pequeno sorriso que torcia o canto esquerdo de seus lábios. Mesmo ele, em toda a sabedoria e experiência, sentia o arrepio quente de ansiedade pela luta.

         Logo os cães da grande anciã uivariam, sinalizando mais uma caçada selvagem.

         Apertou as rédeas de sua rena, vendo o companheiro de milênios lançar seus corvos, para que já se adiantassem em encontrar os alvos, o que significava que o início estava realmente próximo.

         - Não vale trapacear, Odin! – Gritou com sua voz grossa e alegre, fazendo-se ouvir por cima da sinfonia predatória, provocando.

         O outro guerreiro apenas balançou a cabeça, assistindo os corvos sumirem pela ponte arco-íris.

         - Isso não é uma competição, Frey! – Repreendeu, em seu tom paternal.

         O Deus mais jovem riu, não se sentindo diminuído, pois estava acostumado ao tratamento. Era simplesmente natural para aquele grande rei se sentir responsável por todos.

         Frey também não fugia de suas responsabilidades, tanto que estava ali, em sua armadura vermelha e verde, com uma espada bem afiada e polida, preparado para mais uma caçada de início de inverno, onde recolheriam todos os maus espíritos, evitando que incomodassem os vivos durante o período mais árduo do ano.

         Sabia que não se tratava de uma competição de quem capturava mais elfos negros, duendes traquinas, espíritos zombeteiros ou poltergeists, porém já não sentia a animação das eras antigas.

         A primeira senhora da caçada selvagem, Bertha, abdicara desta função há muitos séculos, dedicando-se a cuidar dos mais ocultos mistérios do universo, enquanto lhes delegava essa tarefa. Achara estranho na época, mas agora quase a entendia.

         A caçada era cansativa às vezes, quase ingrata e embora reconhecesse sua importância, havia certo desanimo em realizá-la em um mundo que praticamente o esquecera e não mais agradecia o feito.

         Não controlou um pequeno riso, olhando para Odin em seus trajes azuis e dourados. Em pensar que ousaram torná-lo um velho gordo, de roupa vermelha, por culpa de uma empresa de refrigerante(!) e os sapatos que antes se enchiam de cubos de açúcar para seu cavalo Sleipnir, agora aguardavam serem recheados de brinquedos de plástico.

         Vermelho era a sua cor, bem como as renas, mas as histórias foram misturadas de forma quase risível, enquanto eram esquecidos e substituídos por uma figura folclórica ridícula.

         Diante de tudo isso, questionava-se se ainda valeria a pena realizar a caçada? Não se orgulhava de pensar assim, mas era a noite mais longa do ano, o frio intenso deixava úmido seu cabelo loiro e formava flocos de gelo na superfície de sua barba, enquanto sua bela esposa o aguardava na cama quente, os motivos de cogitar não ir eram bastante bons.

         Ninguém jamais poderia dizer que Frey era um covarde, pois apesar de tudo, quando os uivos dos cães de caça ecoaram na noite escura, não hesitou em soltar os pés dos flancos da rena e relaxar o arreio, autorizando o início do galope.

          Atravessar para Midgard era sempre uma experiência de tirar o folego, pensou, pairando no céu encoberto de nuvens, enquanto seus elfos avançavam dando gritos de guerra, para anunciarem a todos os adversários sua furiosa chegada.

         Havia sempre uma beleza especial naquele reino, de vidas tão curtas e sutis. O que faltava aos humanos em longevidade, eles compensavam em belíssimas criações, como as cidades, com suas luzes que tornavam o chão tão estrelado quanto o manto celeste.

         Afastando a tristeza pela forma que aquelas belas criaturas se distanciaram do resto da natureza, ajeitou-se sobre sua montaria e avançou, tornando a ganhar a dianteira sobre seu exército.

         Era uma marcha veloz e voraz, que não deixava vestígios em seu caminho, enquanto arrastava tudo aquilo que já não era mais bem-vindo naquele mundo. Espíritos errantes tinham a opção de irem por bem ou por mal e a maior parte das criaturas trapaceiras mal tinham tempo de identificar o que lhes atingira.

         O sol já estava prestes a nascer, anunciando o fim da caçada, quando ouviu um grito assustado cortar a noite. Não havia nenhum sinal de influência espiritual daquele ponto, ainda sim, não poderia ignorar um som tão repleto de vulnerabilidade e medo.

         Ordenou que seus guerreiros prosseguissem, enquanto seguia para o local. Aproximando-se, ouviu novos gritos ecoando no entorno da elegante casa de subúrbio, que poderia ser localizada a quilômetros, devido à quantidade de pisca-piscas festivos.

         - Não, por favor, não! – A mulher gritava, de algum lugar no interior da casa.

         - Não? Não é o caralho, sua vadia! – Ouviu uma voz masculina responder, repleta de ódio. – Que porra de roupa foi essa, que você inventou de usar na festa do meu trabalho?!

         Fazendo com que sua rena pousasse no telhado, desceu pela lateral da casa e pela janela da cozinha, assistiu o desenrolar da cena. Uma bela mulher morena, em um vestido vermelho de veludo molhado, de mangas longas e comprimento pouco a cima do joelho, e sandálias de salto-alto prateadas, recuava pelo cômodo, sendo espreitada por um homem que devia ser seu companheiro.

         - V-você disse que tinha adorado a minha roupa antes de sair. – Falou a mulher, com a voz trêmula, enquanto grossas lágrimas negras borravam a maquiagem em seu rosto.

         - Adorei uma porra! Vestida assim e toda cheia de sorrisos pro meu chefe, todo mundo no trabalho vai comentar, vão dizer que eu sou casado com uma piranha, que deu mole pro viado do meu chefe! – Avançou um passo na direção dela e a mudança de posição permitiu notar que tinha um facão na mão.

         A mulher tentou recuar mais um passo, se desequilibrando ao arrastar o salto no chão polido da cozinha e torcer o pé, dando um grito de dor e medo.

         - Não diz isso, por favor, as crianças vão acordar assustadas. Ninguém vai pensar nada! – Ela tentava argumentar, balançando a cabeça, com medo de olhá-lo diretamente.

         O homem deu mais um passo trôpego, claramente bêbado, sem parar de proferir ofensas.

         - Crianças? Filhos de uma putinha, isso sim! Ninguém tava pensando nada, todos estavam vendo minha mulher de mamãe noel sexy, louca pra arrumar um papai Noel açucarado e, de quebra, me enfiar uns chifres de rena no meio da testa!

         Em condições normais, Frey não interferiria em relações humanas. Porém não podia ficar parado, assistindo tal demonstração de violência. Sua irmã jamais o perdoaria se deixasse uma mulher ser atacada de tal forma, ele não se perdoaria.

Viu o homem dar mais um passo na direção dela e erguer a faca para golpeá-la. Então arrebentou a porta e invadiu a cozinha, fazendo com que a mulher olha-se apavorada, enquanto o homem se voltava confuso em sua fúria, ainda com a faca erguida.

         - Mas quem é você, porra? – Perguntou aos berros, com o álcool o impedindo de atentar para a imensa diferença de tamanho entre eles.

         A caçada selvagem era uma limpeza espiritual, visando levar embora tudo que não deveria permanecer no mundo humano. Bem, definitivamente aquele homem abusara de todos os seus direitos e não merecia permanecer impune.

         Pensou Frey, abrindo um sorriso largo e debochado, que deixava a mostra as perfeitas fileiras de dentes brancos, com seus olhos muito azuis faiscando de fúria. Apertou o cabo da espada e a desembainhou com agilidade, em um assobio lamuriento, a erguendo da mesma forma que o homem fizera com a faca mais cedo.

         - Ho-ho-ho, filho da puta!

         Afinal a caçada daquele ano tivera alguma novidade e garantiu menos um idiota no mundo. Feliz Natal!

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Purgatório Gourmet.



         Quem diz que o Rio de Janeiro não é cenário para uma história de terror, jamais passou pelo Centro da cidade a noite.
         Quando a maior parte das pessoas já se recolheram em suas casas e estão seguras por trás das portas trancadas, é como se a cortina criada pela luz do sol fosse retirada e toda a alegria da “cidade maravilhosa” se transmutasse em algo sensual e voraz.
         Todos os seus desejos podem ser realizados, se você souber onde ir e tiver condições de pagar o preço, nem sempre monetário. Todos tem fome de algo e embora o carioca pareça se alimentar de sol, é sobre o manto das trevas, que se revelam suas verdadeiras pulsões.
         Por isso a cidade atrai toda a espécie de seres esquecidos, que se divertem ao realizar e distorcer sonhos.
         O Rio de Janeiro é como um buffet coma tudo que puder, de beira de estrada. Tão barato, que se torna tentador, embora você saiba que não vai encontrar nada de realmente saboroso para saciar seu apetite.
         Saulo jogou a ponta de cigarro no chão sujo, assistindo-a rolar até um bueiro entupido, de onde saiu uma barata, que esmagou com a ponta de seu sapato social preto, perfeitamente engraxado.
         Olhou para seu reflexo em uma vitrine próxima e sorriu satisfeito com a própria aparência. O terno cinza chumbo, bem cortado, delineava bem o ombro largo e insinuava o peitoral definido por baixo da blusa impecavelmente branca.
         A noite estava quente e úmida, mas aquilo não o incomodava. Ajeitou o chapéu panamá, fazendo com que a aba criasse uma sombra misteriosa sobre seus olhos e seguiu, com seus passos tranquilos, até o bar da esquina. Lá, alguns velhos bebiam cachaça vagabunda e prostitutas faziam ponto, aproveitando-se da luz do estabelecimento como uma segurança extra.
         Elas sabiam que aquilo não faria grande diferença se alguém quisesse machucá-las, mas a ilusão era reconfortante. Humanos gostam de criar ilusões para lidar com suas inseguranças.
         A noite, quando o cheiro de decadência parecia se tornar mais forte e viciante, era quando mais se apegavam às ilusões.
         Em um canto do bar, sentada em um banco alto junto ao balcão gorduroso, uma jovem parecia destoar do local, talvez nem tivesse idade para estar ali. Usava roupas muito largas, que pouco favoreciam as curvas pequenas do corpo magro. Tinha os cabelos crespos trançados e sua pele cor de café brilhava devido ao suor.
         Estava encolhida sobre o banco, dando goladas nervosas na cerveja gelada, como se não gostasse do sabor, mais quisesse de forçar a continuar bebendo.
         Quando ele se sentou ao seu lado, o olhou assustada e depois tentou ignorar sua presença.
         - O que faz aqui sozinha? – Saulo perguntou em um tom baixo, abrindo um sorriso que deixava a mostra todos os seus dentes brancos e alinhados.
         A garota franziu a testa, até quase unir suas sobrancelhas, fazendo com que a pele em volta de um piercing que usava repuxasse de modo desagradável e respondeu de forma grosseira:
         - Eu não sou puta, falou? Me deixa em paz!
         Sentiu-se desequilibrar por um instante, diante da reação inesperada. Então forçou uma risada que deveria ser simpática, recusando-se a recuar.
         - Me desculpe, eu jamais pensei que fosse, não tive a intensão de ofendê-la e...
         - Cara, não fode! Por qual outro motivo um playboy metido a hipster igual a você viria falar comigo? Se ‘ta querendo uma trepada fácil, pode desistir de tentar comigo.
         A garota falou, olhando-o pelo canto do olho, enquanto uma das mãos apertava firmemente a garrafa de cerveja, em uma postura defensiva.
         Saulo teve vontade de sorrir, quando o cheiro de suor trouxe o sabor amargo de medo a sua língua. Ela tentava esconder com agressividade, mas estava assustada.
         - Olhe, você entendeu tudo errado. – Recomeçou, de volta ao tom gentil. – Não vim falar com você com nenhuma segunda intensão, apenas fiquei curioso porque não parece combinar com este lugar.
         - E o que você tem a ver com isso? – Perguntou, ainda desconfiada, mas baixando um pouco a guarda.
         Sorriu gentilmente, erguendo um pouco a aba do chapéu e fazendo com que seus olhos verdes faiscantes olhassem diretamente os dela.
         - Nada, na verdade. Mas é que sou escritor e você pareceu interessante, então quis ouvir sua história, se você quiser me contar, claro.
         Suas palavras pareceram desarmar a jovem, que passou a olhá-lo como se fosse louco, mas não uma ameaça.
         - Desde quando escritores se vestem assim?
         - Escritores não podem se vestir bem?
         - Tu não ‘ta bem-vestido, só maluco pra usar terno nesse calor da porra.
         - O calor não me incomoda.
         - Maluco. – Repetiu, com um humor agressivo.
         O moreno expandiu seu sorriso charmoso, sinalizando ao homem atrás do balcão, que também lhe trouxesse uma cerveja.
         - Agora que já sabemos de mim, me fale de você. – Disse, colocando uma das mãos sobre a dela.
         Imediatamente, a garota ficou mais relaxada e com um sorriso macio, começou a falar.
         Se chamava Katye, era a mais velha de uma família de sete filhos, e cansada de suportar os assédios do atual marido de sua mãe, saiu de casa para viver com um namorado aos 16 anos.
         Eles viveram felizes por algum tempo, até que o homem decidiu que queria ter filhos e ela se recusava a engravidar, então começaram as brigas. Até que, naquela noite, ele a agredira com um soco na barriga, gritando que garantiria que jamais pudesse ter filhos. Então ela saiu de casa correndo e vagou até chegar a aquele bar.
         Katye contou a história como se falasse de algo corriqueiro, como o clima, com um sorriso frouxo nos lábios grossos, entorpecida. Passou pela sua mente que não havia bebido o suficiente para ficar naquele estado, mas o pensamento sumiu tão rápido quanto veio, sugado por uma névoa cor-de-rosa, que a colocou em um estado de tranquilidade que nunca antes sentira.
         Saulo manteve o sorriso gentil enquanto ouvia toda a história com atenção. Sentia o estômago revirar, constatando que ela era mais uma das pessoas que aquela sociedade tornara incapaz de amar. Era repulsivo.
         Sentindo uma fome muito mais profunda ou sinistra do que qualquer ser humano seria capaz, a convidou para acompanhá-lo até um motel próximo e a mulher aceitou, sem qualquer hesitação, os olhos vítreos devido ao êxtase.
         Alugou um quarto caro, em um motel que gostava de se fingir elegante, embora não passasse de uma espelunca. As paredes cor de creme eram encardidas, as molduras dos espelhos e a cabeceira tinham detalhes em dourado que estavam descascando, revelando o plástico preto por baixo.
         A garota parecia estranhamente adequada ao ambiente, ela tinha certa preciosidade que não combinava com sua triste história de vida ou com o lugar que a encontrara, mas durante tanto tempo ficara exposta a sujeira e sem cuidados, que perdeu seu brilho.
         Levou-a até o banheiro da suíte e a fez se despir, enquanto enchia a banheira amarelada. A pele escura se arrepiou lindamente em contato com a água gelada, sem que, no entanto, a jovem demonstrasse qualquer desconforto.
         Era uma banheira grande o suficiente para caber dois adultos, se bem colados, então ela não teve problemas em se alinhar com as pernas dobradas, fazendo com que a água chegasse a altura de seu colo.
         Saulo acariciou sua nuca com a ponta dos dedos, bem onde as últimas tranças tinham seu início e ela sorriu docemente, suspirando. Ele continuou afundando a mão nas tranças, sentindo a textura agradável dos fios e Katye semicerrou os olhos e entre abriu os lábios, entregue.
         Prendendo os dedos na nuca, como quem puxa a amada para um beijo, o moreno começou a forçar a cabeça da jovem para trás. O corpo deslizando sem resistência ao seu toque, afundando cada vez mais na água.
         Logo, toda a cabeça da jovem estava submersa, com a mão dele mantendo-se firmemente presa a nuca. Entorpecido, o corpo dela se contorceu fazendo vazar água pela borda da banheira, sem forças para realmente resistir.
         Saulo assistiu fascinado enquanto o ar deixava os pulmões. As mãos dela se prendendo nas laterais de seu terno, que a essa altura encontrava-se encharcado, como uma amante sedenta pelo toque de seu pretendente.
         Assistiu os olhos castanhos se arregalarem, enquanto o corpo tentava em vão respirar, os lábios se entreabrindo e deixando a água invadir os pulmões em uma expressão que remetia ao mais sublime dos orgasmos.
         Por um instante, viu a razão brilhar no fundo dos olhos vidrados, o desejo de viver dela quebrando seu encanto naquele último esforço de se manter viva, mas já era tarde demais e logo em seguida os olhos tornaram-se vazios, enquanto a vida a abandonava.
         As mãos soltaram sua roupa de forma macia, um braço afundando na água, enquanto o outro pendia solto para fora da banheira.
         Olhando o corpo sem vida, Saulo sorriu, insatisfeito, a fome aplacada, mas sem que houvesse real satisfação do apetite.
         Pegou o chapéu panamá e o colocou na beirada da banheira, a única marca que deixaria para quando encontrassem o corpo. Então se virou para partir, sem qualquer consideração maior do que alguém daria a um prato vazio, deixado em uma praça de alimentação.
         Quando saiu do quarto, seu terno estava novamente impecável e um novo chapéu protegia sua cabeça.
         Saiu do hotel sem chamar qualquer atenção, sentindo uma queimação similar a uma indigestão no fundo da garganta, enquanto a irritação crescia em seu interior.
         Aquela não era sua natureza, ele não existia para matar. Seus ancestrais ficariam envergonhados de suas atitudes, pois seu verdadeiro alimento era a paixão e o prazer.
         Houve um tempo em que bebia da paixão, viva um amor verdadeiro em intenso, que durava apenas uma noite e deixava seu fruto, considerado uma benção de saúde e beleza.
Aquela sociedade destruíra tais sentimentos, demonizando seus filhos, fomentando uma gula insaciável nos seres humanos, tudo passou a girar em torno de poder e lascívia, endurecendo corações que tornavam-se mais e mais incapazes de sentir.
         Destruíram a paixão, bem como os rios e lagos em que gostara de habitar, corromperam as emoções, tal qual poluíram o meio ambiente. O que fazia agora era sua vingança, onde antes deixara alegria e fartura, agora espalhava a desgraçada, tal qual fizeram com ele.
         Estava parado na porta do motel, fumando um cigarro enquanto refletia sobre isso, quando um táxi parou. O taxista sorriu simpático, com os olhos percorrendo seu corpo de forma que talvez pensasse ser discreta, quando ofereceu uma “corrida”.
         Saulo analisou a figura do homem, mesmo dentro do carro dava para perceber que era alto, passando a pouco dos 40 anos, com a pele bem queimada de sol, cabelos grisalhos bem cortados e uma barriga média, que criava uma elevação da camisa social puída.
         Abriu um sorriso sedutor, enquanto se acomodava no banco de carona.
O Rio de Janeiro é como um buffet coma tudo que puder, de beira de estrada. Tão barato, que se torna tentador, embora você saiba que não vai encontrar nada de realmente saboroso para saciar seu apetite. Mas incapaz se satisfazer, estava sempre com fome.

Fim.

Ola, leitores!

Finalmente o blog esta de volta e teremos mais contos fresquinhos!
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Beijos!

sábado, 29 de abril de 2017

O Colar de Talassa.



Imagem localizada em banco de imagens gratuitas e editada por mim.

Para dentro do oceano,
grandes ondas vão arrastar
A cidade dourada,
de verde e prata mar.

Desfrute alegremente
a sereia a cantar.

Não toque, não toque,
Não toque em seu colar.

Não toque, não toque,
Não toque em seu colar!

Era uma lenda antiga, uma cantiga de criança tenebrosa, que os pais ensinavam a seus filhos a fim de que se comportassem direito.

Pelo menos foi o que sempre pensara.

Agora assistindo, encharcado pela tempestade, as grandes ondas que se erguiam como mãos negras, cavando seus dedos distorcidos cada vez mais para dentro da costa, percebia como havia sido tolo.

Flauta d’água era uma famosa cidade turística, em uma ilha paradisíaca ligada ao continente apenas por uma moderna ponte metálica prateada, que sempre pareceu ser etérea, como uma passagem para outro mundo.

A ponte era frágil demais, bastou uma onda bem direcionada e ela se partiu, isolando a ilha e impedindo a fuga de seus habitantes.

As histórias diziam que todo o dia ao amanhecer, se você estivesse em um dos diversos lugares de preservação da natureza da ilha, afastado dos centros comerciais barulhentos, era possível ouvir o canto de uma sereia, doce e suave como uma flauta hipnotizante.

Porém nunca acreditara nisso, nunca ouvira o canto e debochava daqueles que juravam ouvi-lo.

A maior atração de Flauta d’Água era um conjunto de ruinas a pouco menos de dois quilômetros da costa, onde se formara um incrível recife de corais, muito apreciado por toda a variedade de mergulhadores.

No centro das ruínas, acessível apenas para mergulhadores mais experientes com equipamento especial, se encontrava a estátua de Lígia. Conhecida como a sereia guardiã da ilha, cujo a voz seria ouvida nos amanheceres.

Os mergulhadores juravam que em seu colo repousava um incrível colar todo cravejado de pérolas e águas marinhas, com um imenso pingente de ouro na forma de uma concha que brilhava como um pequeno sol, apesar das águas profundas; O colar de Talassa. Diziam que tal brilho era o responsável por nunca ninguém ter conseguido tirar uma foto nítida da estátua e assim a lenda se perpetuava.

Contra todos os avisos, debochara. Riu quando Cassandra lhe garantiu que a lenda era real, que seu pai havia visto a estátua quando mais novo e a descreveu em detalhes. Sua amiga era sempre tão dada a acreditar em misticismos baratos.

Porém ele, não. Rodrigo sempre foi um cético, desde os 05 anos quando havia criado uma armadilha para capturar o Papai Noel e, tendo ficado de tocaia, viu sua mãe colocando os presentes na árvore de natal.

Quando a empresa Rota da Felicidade anunciou o concurso, garantindo que pagaria em dobro o valor da peça, para o mergulhador que conseguisse encontrar e trazer a joia submersa para eles, Rodrigo ousou cogitar a hipótese da lenda ser real. Não apenas isso, seria também sua grande chance de juntar o dinheiro necessário para deixar a ilha e iniciar uma vida no continente.

Diversos moradores se manifestaram contra tal concurso, dizendo ser uma blasfêmia. Devia tê-los ouvido.

Muitos mergulhadores vieram a cidade para tentar e falharam. Diziam ter sido arrastados por correntezas vindas de lugar nenhum, falhas inexplicáveis em seus equipamentos e, até mesmo, um que jurou ter visto a expressão da estátua se transformar em uma terrível carranca e ouviu uma voz feminina gritando que fosse embora.

Nada disso serviu para dissuadir Rodrigo da ideia, pelo contrário, apenas alimentou sua crença em ser o único capaz de cumprir o desafio.

Tendo trabalhado desde a pré-adolescência como assistente do pai de Cassandra, ajudando-o em suas pesquisas e mergulhos, conhecia o recife de corais como ninguém, como mudavam as marés e as correntes. Assim, mesmo sem nunca ter ousado mergulhar tão fundo, sabia ser capaz.

No dia marcado, uma pequena plateia de conhecidos se reuniram na costa. Menos Cassandra, que tinha tentado fazê-lo desistir uma última vez, na noite anterior e se recusara a ser testemunha da pior estupidez que ele já havia cometido. Palavras dela.

O céu estava completamente nublado, mas o mar permanecia calmo e liso como um espelho. O barco não teve qualquer problema em chegar aos recifes.

Checou o equipamento pela terceira vez, tendo certeza que nada poderia dar errado e mergulhou, sentindo o abraço gelado do mar cor de esmeralda.

Os primeiros pés foram tranquilos, estava acostumado a sensação. Porém quanto mais descia e a pressão aumentava, mais atento se tornava às batidas aceleradas de seu coração. Sentia um nó se formando na altura de seu estômago, mas associou aquilo a profundidade jamais experimentada.

Por duas vezes se viu pego por correntes que não deveriam estar naquele lugar, naquele momento, mas soube se desviar delas habilmente.

Finalmente, chegou a profundo centro das ruínas e arregalou os olhos, surpreendido, sentindo o ar lhe faltar.

Lá estava, no tamanho de uma pessoa adulta, a lendária estátua da sereia Lígia, o corpo talhado de modo tão perfeito na pedra, que parecia respirar e prestes a se mover a qualquer momento. Ou, pelo menos, essa era a ilusão causada pelo movimento das águas, tentou se convencer.

O rosto era fino e harmônico, os cabelos em cachos que pareciam flutuar ao redor do corpo perfeito, cada escama da cauda talhada a perfeição e os olhos pareciam carregar toda a sabedoria e paixão do oceano. Ela era aterrorizante e completamente sedutora.

Porém nada era mais impressionante que o colar. Nenhuma descrição lhe fizera justiça, as pérolas eram como pequenas gotas de orvalho, em um intrincado bordado de fios prateados tão finos, que pareciam quase não se podia ver, as águas-marinhas também, mas reluziam e tudo apenas servia para destacar a beleza da concha maciça, que parecia ter roubado toda a luz daquele ambiente.

“Vá embora.”

Ouviu, incapaz de identificar de onde vinha o som.

“Desista da sua ambição mesquinha, abandone este local.”

Desta vez, embora achasse estar ficando louco, jurou que as palavras vinham da estátua.

Checou seu equipamento, com medo de estar tendo alguma reação pela falta de oxigênio e constatou que não tinha muito tempo para voltar a superfície.

Uma voz no fundo de sua mente, muito parecida com a de Cassandra, suplicou que desse atenção as palavras da estátua e fosse embora, mas era o seu futuro ali, ao alcance de suas mãos.

Ignorando todos seus instintos, estendeu a mão e tocou a concha, que pareceu surpreendentemente quente, mesmo através da borracha das luvas que vestia. Puxou e a joia se soltou do pescoço da estátua, como uma criança que não quer largar a mãe, mas não tem forças para desistir.

Um choque percorreu seu corpo, desde a ponta de seus dedos, quase o fazendo soltar, mas Rodrigo insistiu e iniciou rapidamente seu caminho de volta.

Assim que voltou a segurança do interior do barco, percebeu o erro que cometera.

- O que você fez?! – Gritou seu amigo Pedro, com uma expressão atônita, segurando o timão do barco, como se parecesse ser seu único ponto de segurança, enquanto olhava fixamente para o horizonte.

Olhando na mesma direção, Rodrigo sentiu vontade de gritar, mas sua voz ficou engasgada em sua garganta.

Nuvens negras haviam se acumulado a cima de Flauta d’Água, despejando torrentes de água e a maior quantidade de raios que jamais vira.

Os gritos dos moradores chegavam a distância onde estavam, enquanto as vastas áreas de floresta tornavam-se vermelhas devido as chamas, que não paravam de avançar, a despeito da chuva.

As maiores ondas que já vira engoliam a uma vez pacífica costa e só então percebeu que a fúria do mar fazia com que o barco em que estava balançasse como uma pequena casca de noz.

- O colar! Devolva o colar! – Pedro tornou a gritar, fazendo com que o mergulhador se lembrasse que ainda segurava a joia.

Desesperado, sentindo a água do mar ser lavada pela tempestade que os atingia, arremessou a peça o mais longe que pode, em direção ao centro dos recifes.

Neste mesmo instante, assistiu uma onda certeira derrubar a ponte prateada, deixando para trás um monte de metal revirado, como o esqueleto de um monstro.

Impotente, assistiu o oceano engolir a cidade onde vivera toda a vida, tudo o que tinha e, provavelmente, todos aqueles que conhecia.

Sua pele gelada foi cortada pelo calor causticante das lágrimas que escorriam de seus olhos e sem que percebesse, murmurava e então gritava pedidos de desculpa e piedade.

Porém as forças da natureza permaneciam impassíveis, se vingando de sua arrogância e da de seus conterrâneos, que decidiram desfrutar da propaganda e promessas de investimento da empresa marítima, desrespeitando um contrato muito mais antigo.

Então, como se algo ancestral e cruel risse de sua desgraça, percebeu que os ventos uivantes que devastavam a outrora paradisíaca paisagem, pareciam cantar.

Não toque, não toque,
Não toque em seu colar.

Fim.

quarta-feira, 12 de abril de 2017

Incêndio.

Imagem localizada em banco de dados e editada por mim.

         Começou como uma pequena fagulha, algo que poucos dariam atenção:

         - Chata!

- Gorda!

- Feia!

         Crianças podem ser cruéis, mesmo que não sejam capazes de entender a gravidade do que estão fazendo.

         - Se você não me der isso, não sou mais sua amiga!

         Os adultos tendem a ignorar, acharem besteira. Afinal, é só coisa de criança.

         - Não precisa chorar por isso.

- Que bobagem!

- Acho que ele gosta de você...

         Ninguém nota a pequena fagulha, até que atinja algum material inflamável e forme uma brasa, até chegar a uma pequena chama.

         - Não quero você no meu aniversário!

-Sai daqui!

- Só aceitei brincar com você, porque você tem esse brinquedo.

         Aos poucos, a intensidade da chama vai aumentando e o calor começa a se fazer notar.

         - Esquisita!

- Chata!

- Você é insuportável!

- Bruxa feia!

         Antes que percebam, o fogo vai tomando todo o ambiente e a fumaça tóxica torna difícil respirar.

         - Não encosta nela, se não você vai acabar ficando igual!

         O som do crepitar da madeira se torna insuportável, as chamas lambem a tinta da parede e assumem um ameaçador tom verde limão, destrutivo.

         - Sério que você gosta dele? Ridícula! Ele nunca ficaria com você!

         Pode parecer aterrorizante, mas trata-se de uma verdadeira libertação. Como a fênix, que arde em chamas, para depois renascer.

         - Viu a maquiagem? Que vadia carente!

         Não se preocupe, não é como se realmente houvesse alguém lá dentro. Ela não iria matá-los, nenhum deles valia que ela destruísse o próprio futuro desta maneira.

         - Piranha! Aposto que usa drogas...

- Você é tão estranha, ninguém quer transar com você!

- Dizem que ela dá pra qualquer um...

         O som dos vidros se partindo era ensurdecedor, uma chuva de cacos prateados decorando o chão do pátio, enquanto a fumaça pintava o céu noturno de cinza.

         - Pode me mostrar quem é a... O que? É você?! Ah...

         Não importava o quão antigo fosse o prédio, ele desmoronaria a qualquer instante.

         - Que cabelo horrível!

- Por que ela se veste assim?

- Nem o diabo merece ela!

         Sentia vontade de rir, dançar, cantar ou fazer tudo isso ao mesmo tempo. Amanhã todos saberiam, estaria em todos os jornais.

         A fumaça criava a impressão de que toda a estrutura balançava, não resistirá por muito mais tempo.

        - Dizem que ela gosta desse cantor

- Eu queria ter ido no show dele.

- Ela foi!

- Vamos pedir para que finjam ser ele e enganá-la, vai ser divertido!

         Não precisava de sangue, teria nojo de entrar em contato com qualquer parte deles. Porém aquele prédio, aquele símbolo iria ser destruído.

        - Mas ela é legal, sempre ajuda com os trabalhos...

- Ela tenta...

- Vadia!

- Puta!

         Finalmente a explosão. Todo o prédio fora a baixo. Estilhaços chegaram há três quarteirões de distância. Diversos ex-alunos dizem ter ouvido a explosão, embora morassem a quilômetros de distância.

         Porém ninguém foi atingido, não houve um morto ou ferido. Chamavam de sorte ou milagre.

         Ela ria, assistindo a tudo de longe, na superfície de seu espelho.

         Diziam que ela era boa em ver o futuro, mas nem tanto.

         Seus antigos colegas de colégio eram mais, eles previram desde a infância o que ela seria: Uma bruxa.


Fim.