Respirou fundo o ar gelado do fim da tarde e sentiu-se
contagiado pela energia ao seu redor. A imensa rena que montava tinha o corpo
forte e quente, que parecia vibrar de excitação diante da marcha que logo
iniciariam. Suas bufadas de ar produziam fumaça, devido ao frio intenso e os
enormes chifres espalhavam torrões de terra, cavando o chão congelado.
Seu exército de elfos ria e entoava cânticos sobre caçadas
passadas, ajeitando os últimos detalhes de suas selas, checando espadas, arcos
e flechas.
Abriu um largo sorriso provocante, olhando o velho guerreiro
calho que se posicionava ao seu lado, seguido por seu exército de heróis
mortos. Seu cavalo também se demonstrava contagiado pela atmosfera, batendo
ansioso suas quatro patas dianteiras no chão.
O velho retribuiu seu sorriso com um falso olhar de censura,
buscando manter a pose de Pai de Todos, mas incapaz de esconder o pequeno
sorriso que torcia o canto esquerdo de seus lábios. Mesmo ele, em toda a
sabedoria e experiência, sentia o arrepio quente de ansiedade pela luta.
Logo os cães da grande anciã uivariam, sinalizando mais uma
caçada selvagem.
Apertou as rédeas de sua rena, vendo o companheiro de
milênios lançar seus corvos, para que já se adiantassem em encontrar os alvos,
o que significava que o início estava realmente próximo.
- Não vale trapacear, Odin! – Gritou com sua voz grossa e
alegre, fazendo-se ouvir por cima da sinfonia predatória, provocando.
O outro guerreiro apenas balançou a cabeça, assistindo os
corvos sumirem pela ponte arco-íris.
- Isso não é uma competição, Frey! – Repreendeu, em seu tom
paternal.
O Deus mais jovem riu, não se sentindo diminuído, pois
estava acostumado ao tratamento. Era simplesmente natural para aquele grande
rei se sentir responsável por todos.
Frey também não fugia de suas responsabilidades, tanto que
estava ali, em sua armadura vermelha e verde, com uma espada bem afiada e
polida, preparado para mais uma caçada de início de inverno, onde recolheriam
todos os maus espíritos, evitando que incomodassem os vivos durante o período
mais árduo do ano.
Sabia que não se tratava de uma competição de quem capturava
mais elfos negros, duendes traquinas, espíritos zombeteiros ou poltergeists,
porém já não sentia a animação das eras antigas.
A primeira senhora da caçada selvagem, Bertha, abdicara
desta função há muitos séculos, dedicando-se a cuidar dos mais ocultos
mistérios do universo, enquanto lhes delegava essa tarefa. Achara estranho na
época, mas agora quase a entendia.
A caçada era cansativa às vezes, quase ingrata e embora
reconhecesse sua importância, havia certo desanimo em realizá-la em um mundo
que praticamente o esquecera e não mais agradecia o feito.
Não controlou um pequeno riso, olhando para Odin em seus
trajes azuis e dourados. Em pensar que ousaram torná-lo um velho gordo, de
roupa vermelha, por culpa de uma empresa de refrigerante(!) e os sapatos que
antes se enchiam de cubos de açúcar para seu cavalo Sleipnir, agora aguardavam
serem recheados de brinquedos de plástico.
Vermelho era a sua cor, bem como as renas, mas as histórias
foram misturadas de forma quase risível, enquanto eram esquecidos e
substituídos por uma figura folclórica ridícula.
Diante de tudo isso, questionava-se se ainda valeria a pena
realizar a caçada? Não se orgulhava de pensar assim, mas era a noite mais longa
do ano, o frio intenso deixava úmido seu cabelo loiro e formava flocos de gelo
na superfície de sua barba, enquanto sua bela esposa o aguardava na cama
quente, os motivos de cogitar não ir eram bastante bons.
Ninguém jamais poderia dizer que Frey era um covarde, pois
apesar de tudo, quando os uivos dos cães de caça ecoaram na noite escura, não
hesitou em soltar os pés dos flancos da rena e relaxar o arreio, autorizando o
início do galope.
Atravessar para
Midgard era sempre uma experiência de tirar o folego, pensou, pairando no céu
encoberto de nuvens, enquanto seus elfos avançavam dando gritos de guerra, para
anunciarem a todos os adversários sua furiosa chegada.
Havia sempre uma beleza especial naquele reino, de vidas tão
curtas e sutis. O que faltava aos humanos em longevidade, eles compensavam em
belíssimas criações, como as cidades, com suas luzes que tornavam o chão tão
estrelado quanto o manto celeste.
Afastando a tristeza pela forma que aquelas belas criaturas
se distanciaram do resto da natureza, ajeitou-se sobre sua montaria e avançou,
tornando a ganhar a dianteira sobre seu exército.
Era uma marcha veloz e voraz, que não deixava vestígios em
seu caminho, enquanto arrastava tudo aquilo que já não era mais bem-vindo
naquele mundo. Espíritos errantes tinham a opção de irem por bem ou por mal e a
maior parte das criaturas trapaceiras mal tinham tempo de identificar o que
lhes atingira.
O sol já estava prestes a nascer, anunciando o fim da caçada,
quando ouviu um grito assustado cortar a noite. Não havia nenhum sinal de
influência espiritual daquele ponto, ainda sim, não poderia ignorar um som tão
repleto de vulnerabilidade e medo.
Ordenou que seus guerreiros prosseguissem, enquanto seguia
para o local. Aproximando-se, ouviu novos gritos ecoando no entorno da elegante
casa de subúrbio, que poderia ser localizada a quilômetros, devido à quantidade
de pisca-piscas festivos.
- Não, por favor, não! – A mulher gritava, de algum lugar no
interior da casa.
- Não? Não é o caralho, sua vadia! – Ouviu uma voz masculina
responder, repleta de ódio. – Que porra de roupa foi essa, que você inventou de
usar na festa do meu trabalho?!
Fazendo com que sua rena pousasse no telhado, desceu pela
lateral da casa e pela janela da cozinha, assistiu o desenrolar da cena. Uma
bela mulher morena, em um vestido vermelho de veludo molhado, de mangas longas
e comprimento pouco a cima do joelho, e sandálias de salto-alto prateadas,
recuava pelo cômodo, sendo espreitada por um homem que devia ser seu
companheiro.
- V-você disse que tinha adorado a minha roupa antes de
sair. – Falou a mulher, com a voz trêmula, enquanto grossas lágrimas negras
borravam a maquiagem em seu rosto.
- Adorei uma porra! Vestida assim e toda cheia de sorrisos pro
meu chefe, todo mundo no trabalho vai comentar, vão dizer que eu sou casado com
uma piranha, que deu mole pro viado do meu chefe! – Avançou um passo na direção
dela e a mudança de posição permitiu notar que tinha um facão na mão.
A mulher tentou recuar mais um passo, se desequilibrando ao
arrastar o salto no chão polido da cozinha e torcer o pé, dando um grito de dor
e medo.
- Não diz isso, por favor, as crianças vão acordar
assustadas. Ninguém vai pensar nada! – Ela tentava argumentar, balançando a cabeça,
com medo de olhá-lo diretamente.
O homem deu mais um passo trôpego, claramente bêbado, sem
parar de proferir ofensas.
- Crianças? Filhos de uma putinha, isso sim! Ninguém tava
pensando nada, todos estavam vendo minha mulher de mamãe noel sexy, louca pra
arrumar um papai Noel açucarado e, de quebra, me enfiar uns chifres de rena no
meio da testa!
Em condições normais, Frey não interferiria em relações
humanas. Porém não podia ficar parado, assistindo tal demonstração de
violência. Sua irmã jamais o perdoaria se deixasse uma mulher ser atacada de
tal forma, ele não se perdoaria.
Viu
o homem dar mais um passo na direção dela e erguer a faca para golpeá-la. Então
arrebentou a porta e invadiu a cozinha, fazendo com que a mulher olha-se
apavorada, enquanto o homem se voltava confuso em sua fúria, ainda com a faca
erguida.
- Mas quem é você, porra? – Perguntou aos berros, com o
álcool o impedindo de atentar para a imensa diferença de tamanho entre eles.
A caçada selvagem era uma limpeza espiritual, visando levar
embora tudo que não deveria permanecer no mundo humano. Bem, definitivamente
aquele homem abusara de todos os seus direitos e não merecia permanecer impune.
Pensou Frey, abrindo um sorriso largo e debochado, que
deixava a mostra as perfeitas fileiras de dentes brancos, com seus olhos muito
azuis faiscando de fúria. Apertou o cabo da espada e a desembainhou com
agilidade, em um assobio lamuriento, a erguendo da mesma forma que o homem
fizera com a faca mais cedo.
- Ho-ho-ho, filho da puta!